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1602: Os céus de Londres estão vermelho-sangue ao meio-dia

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[dropcap size=dropcap-big]N[/dropcap]ão recordo exatamente a circunstância, mas lembro bem do lugar e mais ou menos da época: foi há uns dez anos, em uma banca de revistas situada no Le Bon Marché, uma área comercial do conjunto Déborah (em Manaus). Eu estava de passagem por ali, provavelmente indo ou voltando do trabalho, quando resolvi, em um lance de nostalgia, entrar naquela velha banca de revistas em que eu passava horas na infância – para raiva do atendente, que não gostava nem um pouco eu que ficasse folheando os quadrinhos sem comprar nenhum.

Nessa segunda visita à velha banca, muitos ano depois das folheadas gratuitas e muitos outros antes deste texto, acabei vendo um título que logo atraiu minha atenção. Não tinha muita ideia de quem era Neil Gaiman naquela época, mas a capa com um tipo de ilustração sinistra, aparentemente ambientada na Idade Média, me fascinou. Como sempre gostei de narrativas fantásticas e de História, a primeira parte da graphic novel 1602 acabou sendo a única coisa que levei da banca naquele dia.

X-Men na Idade Média? Vai além disso.

X-Men na Idade Média? “1602” vai bem além disso.

Nas horas que se seguiram e em poucos dias, devorei aquelas páginas. Era simplesmente fantástico. Primeiro, pelo enredo básico que, até então, eu havia entendido: os X-Men na Europa Medieval, precisamente em 1602, em meio a conflitos políticos e sociais que de fato fazem parte dos livros de História.

A construção da narrativa, as falas cuidadosamente pensadas, a ilustração primorosa. Eu não era capaz de apontar qualquer defeito naquilo. Terminei a primeira parte, mas não pude adquirir a continuação.

O tempo passou. Reli incontáveis vezes aquele único fascículo, imaginando e delirando sobre o que aconteceria a seguir. Eram tempos em que eu, pessoalmente, tinha acesso parco à Internet. Resolvi, em um desses acessos, pesquisar sobre a obra.

Para minha surpresa, empolgação e, ao mesmo tempo, certa tristeza, tratava-se de um conjunto composto por oito edições. Acostumado com a capa e ilustrações internas da primeira, os desenhos das sete partes seguintes me deixavam extasiado. Sabe o desejo de saber como a história termina?

"Ela pode ser perigosa?" Sim, Virgínia pode ser perigosa.

Dr. Estranho e o índio galês vindo do além-mar: “Ela pode ser perigosa?” Sim, Virgínia pode ser perigosa.

O fato é que, após aquela visita à velha banca, levei oito anos para ter em mãos a versão completa de 1602, de Neil Gaiman (as lindas ilustrações são de Andy Kubert, com arte-finalização digital de Richard Isanove e capas de Scott McKowen).

A excitação por finalmente saber como tudo terminaria só não foi maior que a sensação de descobrir o quanto eu nada sabia. 1602 não falava apenas dos mutantes liderados pelo professor Xavier na Idade Média, mas quase todos os principais super-heróis do universo Marvel.

O menestrel cego

A leveza e sutileza do texto de Gaiman ajudavam a tornar a descoberta ainda mais impressionante, já que não era possível identificar, entre os personagens, de que herói estávamos falando.

Talvez, para os leitores mais fanáticos da Marvel, tudo fosse mais claro. Mas, para o leitor médio (como eu, que não tinha como comprar quadrinhos quando bem entendia), era assim: se alguns dos heróis eram evidentes, como os mutantes, outros eram um mistério. Levei algum tempo para associar, por exemplo, a identidade do menestrel irlandês cego, que cantava em tavernas, com Matt Murdock, o Demolidor – o “homem sem medo”.

Os principais personagens do universo Marvel são revelados em doses homeopáticas.

Os principais personagens do universo Marvel são revelados em doses homeopáticas.

A relação só ficou clara para mim em uma cena, após um encontro do menestrel cego com Nick Fury (mostrado, em 1602, como chefe da inteligência da rainha Elizabeth I) e seu pagem (que muito mais tarde viria a saber que tratava-se de Peter Parker, mas ainda sem os poderes aracnídeos do amigo da vizinhança).

Após uma rápida reunião, onde a dupla se encontrou em um quarto fechado, totalmente sem iluminação, com um menestrel cego que tinha a assustadora capacidade de saltar pelas paredes e apanhar diamantes na escuridão, o jovem pagem de Fury diz: “Uma coisa eu sei sobre ele, sir… ele não tem medo do escuro”. De modo que é seguido pelo mestre: “Não, Peter. Nem do escuro, nem de nada”.

A balada de mau agouro

Há, ainda, as pistas deixadas por Gaiman ao longo da trama, preparando terreno para as edições finais e apresentação dos demais personagens. Em uma das cenas na taverna, antes do encontro com Fury, o menestrel cego canta a “Balada do Fantásticko”:

Quatro bravas almas o oceano cruzavam, de sul a norte, no Fantásticko sua jornada começara. Uma era o robusto capitão, a outra um sábio Lorde, outra era um jovem com espada de fino corte, e a última uma donzela de tez tão clara…

Como se, por si só, não fosse interessante e cativante o bastante, imagine os vilões mais perigosos e respeitados do mundo Marvel em posições-chave no tabuleiro político dos bastidores das cortes dos reinados europeus.

Cito um: o antagonista do professor Xavier, honrando o personagem clássico que sempre está no lugar certo, na hora certa e com tudo planejado, interpreta, na saga de 1602, nada menos que o inquisidor-mor na fortaleza da Santa Inquisição, na Espanha. A diferença é que a Santa Inquisição não caça mutantes, mas os “sanguebruxos”.

Isso sem falar nos personagens fictícios inseridos no lugar de personagens históricos reais. Nick Fury, por exemplo, era o chefe da inteligência da rainha Elizabeth I – papel desempenhado, de acordo com a História, por Sir Francis Walsingham. John Dee, matemático e astrólogo, conhecido por seu papel como conselheiro real, foi substituído pelo personagem perfeito: Dr. Estranho.

Estranho como o Doutor

Quando finalmente terminei de ler os oito tomos de 1602, quase uma década depois de ter começado, senti aquela conhecida sensação de vazio após o fim de uma leitura. Mas foi mais intensa, desta vez: eu nunca esperara tanto para encerrar uma leitura. E nunca valera tanto a pena. As oito edições dialogam com perfeição entre si e Neil Gaiman coloca com maestria cada personagem Marvel na trama, dando papeis e importâncias decisivas para cada um deles, sem deixar ninguém de fora e atribuindo, a cada um, o peso dramático equivalente.

Hoje, conhecendo o trabalho de Gaiman, sinto-me suspeito para falar. Mas reitero com uma colocação puramente retórica: se havia falta de evidências da genialidade dramática-literária desse escritor britânico, 1602 vem para jogá-las por terra. Quando acho que ele não poderia mais me surpreender, ele faz com que o personagem que menos gosto do universo Marvel seja um dos mais sensacionais nessa trama alternativa. Não digo quem é.

Para quem gostou do bom equilíbrio entre os personagens no filme Os Vingadores, de 2012, e vem curtindo a franquia dos mutantes no cinema (X-Men: Dias de um futuro esquecido promete ser épico), não vai se decepcionar com 1602.

Leia, impressione-se e volte aqui para me contar. Enquanto isso, olho para os arranha-céus mais altos de São Paulo sob as espessas nuvens vermelhas da noite e pergunto: onde está Virgínia?

As oito capas de Scott McKowen para a saga '1602'.

As oito capas de Scott McKowen para a saga “1602”.


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